Hispéria (ou Hespéria) 1. Uma das ninfas inácides concebidas pelo potâmoi Ínaco 2. Hispânia ou Península Ibérica (Hespérica), tal como referida por Camões 3. Cidades dos Estados Unidos da América (Califórnia e Michigan) 4. Asteróide descoberto em 1861 por Giovanni Schiaparelli 5. Espécie de insecto (Aphaenogaster hesperia) 6. Espécie de gastrópode (Inodrillia hesperia) 7. Região do planeta Marte (Planum Hesperia) 8. Espécie de borboleta 9. Jornal (Hesperia) académico de Arqueologia 10. Cidade da Península Ibérica para onde confluem viajantes de todas as partes do mundo e centro mundial de estudos em mitologia (Hispéria).

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Pequenos apontamentos sobre Augusto Gomes, o ortopedista da rua Cinquenta

Augusto Gomes é filho de Ernestina Guterres e de Manuel Gomes.
Augusto Gomes completará cinquenta anos durante a próxima semana.
Augusto Gomes veste capacinho preto como a noite.
Augusto Gomes gagueja aos dias de semana.
Augusto Gomes receitou sapatos ortopédicos a 4 gerações diferentes de hisperianos.
Augusto Gomes mantém consultório aberto na rua Cinquenta desde que a rua Cinquenta é rua Cinquenta (dantes chamava-se rua Calma como o mar na primavera de Axulkiehu, uma pequena cidade maia que já não existe, se a observares a partir de determinada perspectiva.)

Em Hispéria são gratos a Augusto Gomes porque:
a) endireita os pés das crianças;
b) sugeriu a dona Cândida que calçasse o sapato direito no pé esquerdo e o sapato esquerdo no pé direito;
c) casou com dona Chiquinha de Jesus, que a todos cansava com a fúria de casar.

sábado, 28 de julho de 2012

Hashir, a cidade do vento

Paul Court visitou Hashir 11 anos atrás, durante o mês de Abril, o mês das festas do ar quente e do vento. Centenas de balões de ar imponente, pintados de todas as cores, pairavam na tarde amarela da cidade desenhando sombras fugazes nas ruas e nas casas. Os habitantes de Hashir, vestidos de branco e enfeitados com asas, tecidos flutuantes ou flores de dente-de-leão, sorriam e cumprimentavam-se. A cada largo ou clareira, bandas formadas por quatro ou cinco elementos sopravam instrumentos de vento, formando uma incomensurável e caótica melodia que abraçava a cidade. Celebrava-se o ar puro e os ventos que favoreciam a pureza da cidade. Múltiplas procissões serpenteavam as ruas, por vezes cruzando-se umas com as outras. À frente seguiam as Hubhas, as guardiãs das portas dos templos do vento desde o tempo de Moisés, ou, na sua indisponibilidade, alguém por si nomeado, geralmente crianças com não mais de 6 anos,  idade a partir da qual poderiam ser dedicadas a Moisés e aos ventos divinos.
Paul Court tirou a mochila, enxugou a testa com um pedaço de pano sujo e sentou-se quebrado pelo calor. Ouvira falar muito dos prodígios de Hashir. Durante 2 ou 3 dias, em pleno inverno, a cidade é fustigada por peixes voadores do Mar Arábico que viajam centenas de quilómetros, passando por cima de outras cidades e de outros países, para encontrar a morte nas portas de Hashir. Durante a segunda quinzena de janeiro, as árvores de Hashir adquirem uma tonalidade azulada desconhecida noutras partes do mundo; chamam-lhe a "quinzena da paixão das árvores", porque as árvores parecem estender os ramos umas para as outras, como se quisessem abraçar-se. Em agosto, no pico do calor arábico, pássaros de todo o país e dos países vizinhos habitam, por minutos, Hashir; e todas as varandas, todas as árvores, todos os postes, todos os terraços, todos os telhados, todas as ruas e todas as janelas se enchem de pássaros. A cidade cobre-se de penas e transforma-se ela própria numa interminável ave. Por fim, os pássaros desaparecem da mesma forma que apareceram, sem ninguém perceber como nem porquê.
Lá ao fundo, no meio da algazarra, cerca de uma centena de idosos ajoelha-se no chão e ergue as mãos ao céu em sinal de súplica. Na varanda de um edifício mais alto, uma belíssima mulher de seios descobertos lança jarros de água para a rua e ri freneticamente. No telhado de uma casa, dois homens disparam tiros para o ar. Na rua à direita, as crianças, descalças, lançam papagaios.
Uma mulher mais velha dirige-se a Paul Court. Olha-o muito fixamente e pergunta-lhe:
- Quem és tu, o que fazes na cidade do vento? - mas sem mexer os lábios, a boca, nada.
- Quem és tu, o que fazes na cidade do vento, homem? - e nada, a mulher não mexe a boca.
O som nasce claramente naquele corpo, mas não há gestos, não há movimentos, como se a velha falasse com o pensamento e as palavras aparecessem tão claras como aparece a música das bandas e a agitação dos habitantes de Hashir.
Um homem mais jovem, aparentando ter cerca de 30 anos, dirige-se a ele com ar reprovador.
- Não devias ter entrado na cidade neste dia, estrangeiro! - diz-lhe, sem mexer a boca.
- Não devias ter entrado na cidade neste dia, estrangeiro! - e não há movimento na sua boca.
O homem e a velha afastam-se e de seguida surge um grupo de 5 homens armados. Agarram em Paul Court pelos braços e arrastam-no. Durante 5 dias, os dias em que duraram as festas, Paul não viu ninguém, não falou com ninguém. Fechado num quarto escuro, recebia água e alimentos por uma pequena abertura na porta, mas ao terceiro dia esqueceram-se dele. E apenas escapou quando a velha que primeiramente o abordou lhe abriu a porta e perguntou:
- Quem és tu, o que fazes na cidade do vento, estrangeiro?- e não abriu a boca.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Paul Court, o viajante do Médio Oriente

Cheguei à estalagem depois das duas da manhã.

No quarto 5, no primeiro andar, e por cima da recepção, instalou-se Paul Court, o inglês gago, 10 anos atrás. Segundo Alvarez, não sai do quarto mais do que 10 minutos por dia, o suficiente para permitir que madame Sophie, que ele detesta, lhe arrume o quarto. "Velho porco inglês, fora daqui! Fora daqui!", grita-lhe madame Sophie. Paul Court desce as escadas aos gritos e corre num susto para o outro lado da rua. Espreita nas pontas dos pés para as janelas do seu quarto - ora num pé, ora noutro, sem descanso; levanta o queixo, afina o olhar, brame os punhos com fúria no ar. Quem passa na rua não deixa de reparar nas ceroulas encardidas de Paul Court e na jaqueta do exército de Sua Majestade, desfigurada por camadas de botões cosidas aleatoriamente. Quando madame Sophia acaba de arrumar e de limpar os aposentos de Paul Court, e ele assim o percebe, entra a correr a toda a velocidade na estalagem, trepa os degraus dois a dois e entra no quarto, batendo a porta com estrondo. Muitas vezes, ainda madame Sophie não acabou a limpeza e novamente corre Paul Court para o outro lado da rua, espreitando para dentro do quarto nas pontas dos pés. O inglês gago apenas come bolachas e bebe água, receitou-lhe esta dieta um sábio nómada. Paul Court é especializado em viagens pelo Médio Oriente, e já visitou os seguintes países e territórios: Afeganistão, Arábia Saudita, Bahrein, Chipre, Iémen, Iraque, Irão, Jordânia, Omã, Palestina, Síria, Sudão, Líbia, Líbano. Alvarez desconfia que Paul Court sofre de uma doença qualquer, embora não se atreva a tentar adivinhar qual. "Quem o devia saber era o doutor Mnérides,  especialista em mitologia da medicina. O doutor Mnérides sabia de cor todos os catálogos de doenças, físicas, mentais ou transcendentais, escritos desde que se escreve neste planeta. O doutor Mnérides saberia, por exemplo, discorrer prolongadamente sobre a doença dos pés verrucosos do povo Maia: causas, primeiros sinais, sintomas, diagnóstico diferencial, características e consequências físicas e emocionais para o portador, evolução da doença, impacto na comunidade próxima e distante, percepção dos doentes pelos membros da comunidade interna e externa, implicações nos cuidados de saúde da família, etc.. O doutor Mnérides foi um grande sábio. Morreu no ano passado, não se sabe de que doença. Uma grande perda. O doutor Mnérides não deixava sair ninguém desta estalagem sem um exame completo, incluindo fígado, pâncreas e coração. Mas já morreu."

Digo-lhe adeus, até amanhã, espero acordar cedo no dia seguinte, explico.
Descendo as escadas duas a duas, vem Paul Court. Dirige-se em corrida para o outro lado da rua, estica-se em bicos de pés e espreita para dentro do seu quarto.
- Paul Court é sonâmbulo - explica-me Alvarez.

terça-feira, 24 de julho de 2012

O Clube das Incertas Viagens e Remotas

No Clube das Incertas Viagens e Remotas juntam-se frequentemente duas velhas que sabem muito bem jogar o bridge e conversar sobre os mais diversos assuntos. Ocasionalmente, brindam fora de horas a factos tais como a Tomada da Bastilha e a queda do castelo de Montblanc, no norte França, às mãos da dinastia dos Sioux, que de índio ostenta apenas o nome. Oleonor, a turca, e também a mais velha das velhas, queixa-se amiúde da perna direita e refere que se não fosse o cão alsaciano que deixou na sua casa do lago, em Tuz Baraji, jamais a Turquia a tornaria a ver mancar.
- O Kirse ladra de acordo com a hora do dia e com a cor do céu. As saudades são a pior das campanhias.
Lá fora, a noite cai com esplendor, e as brasas escondidas no céu acendem-se por ordem dos viajantes do tempo. Uma aragem surda corre baixinho nas ruas e o silêncio regressa ao lugar que sempre conheceu. Hispéria alonga os braços e desfalece no canapé.
Encostados a uma mesa do canto, eu e o meu tio bebemos cafés calados. As velhas falam alegremente sobre fatalidades; como falecer com dignidade, é esse o tema da conversa. Oleonor insiste: a alma do viajante não reconhece a morte como sua. A ossuda Ingrid defende a universalidade da morte, mas sem grande convicção, pois, apesar da racionalidade do seu argumento, também lhe custa admitir que o viajante não passe de um mero mortal e não habite o mesmo céu de Zeus ou de Hera.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Pequeno apontamento sobre o crescimento das árvores em Hispéria

O bufão azul encosta a cabeça a um cântaro de água e sonha com a lua nas mãos de uma menina. Assim que acorda do sonho acordado, e num repente, tange o alaúde com bastante exactidão e declama enlevado um terceto marítimo. A corte aplaude.

(0 crescimento das árvores em Hispéria decorre como noutro lado qualquer, e é bastante aborrecido para descrever, ainda pior para ler.)

domingo, 22 de julho de 2012

As putas tristes de Dom Sebastião

As putas tristes de Dom Sebastião estavam sentadas nos bancos da entrada do mercado; sentadas e tomadas de enorme quietude, treinando para virem a tornar-se elevadas e experientes estátuas humanas, tais como as expostas nos grandes centros culturais do mundo.
- Barcelona domina o mercado das estátuas humanas. O meu sonho, o meu sonho de vida é transformar o centro de Hispéria numa exposição permanente, de modo a rivalizar em número e em imponência com Barcelona, com Tiblissi e com Bacu.
Empoleirado num precário estrado formado por duas caixas de peixe, Dom Sebastião socorre-se do seu computador portátil para discursar. Munira-se também de um projector e de uma tela branca. No entanto, o projector recusou-se a funcionar, e o belíssimo Powerpoint construído na noite anterior, e que incluía figuras de Degas, imagens de senhoras da Bélle Époque, pinturas de Akirah Jhuri, o pintor iraniano, e colagens de Tyuiruja Manaui, a artista cambojana, aguardava, certamente consternado, por melhores dias. As putas tristes de Dom Sebastião são ex-prostitutas de Port Moresby, cidade costeira da Papua Nova Guiné; 10, no seu total: Mana, Mena, Mina, Mona, Muna, Nama, Nema, Nima, Noma e Numa. Todas elas entristeceram subitamente no dia 17 de julho de 2010, pelas 3 horas da tarde, enquanto olhavam distraidamente o mar. Sem saberem o que fazer, inscreveram-se para estátuas humanas, tal como anunciado no jornal; o objectivo partilhado era simples: petrificar a tristeza para que não a sentissem mais.
Dom Sebastião acabou a sua apresentação pública, desceu do estrado debaixo de uma pequena mas entusiasmada salva de palmas, dirigiu-se a  Mana, Mena, Mina, Mona, Muna, Nama, Nema, Nima, Noma e Numa e ordenou:
- Agora meninas, braço direito no ar em forma de papagaio durante 2 minutos.
 Mana, Mena, Mina, Mona, Muna, Nama, Nema, Nima, Noma e Numa olharam-se tristemente um e levantaram o braço direito.

sábado, 21 de julho de 2012

O livro do escafandrismo

escafandrismoJuan Martinez, o velho sentado a fumar um cubano, é bisneto de Gavian Santa Cruz, um dos primeiros alunos da escola de escafandrismo construída por Napoleão, na Ilha de Santa Helena, em 1986. Tinha por companheiro de turma:

Pablo Quintero - 62 anos, sapateiro;
Tina Quintero - 59 anos, irmã de Pablo Quintero, desempregada;
Antonio Benitez - 73 anos, alfaiate;
Juan Bermudez - 32 anos, pirata das Caraíbas;
Fernando Gullén -  58 anos, inspector da polícia;
Helga Liné - 34 anos, costureira;
Alfonso Vallejo - 48 anos, professor primário.

Sob a orientação de Napoleão, o grupo reunia às 7 da manhã. Tina servia o café e o pão com manteiga, e Napoleão desenhava esquemas complexos no quadro. Frequentemente, era interrompido por Helga Liné, que anunciava numa voz aguda: "Senhor Napoleão, não pode ser assim, o menino não comeu nada!". Napoleão continuava a desenhar ainda mais entusiasmado. Para que Napoleão não perdesse todos os desenhos, porque teria de apagar para desenhar novamente, conseguiu que a Marinha Inglesa lhe cedesse todos os quadros de lousa a bordo de todos os navios. Conseguiu juntar 2, um deles partido porque um marinheiro cabeceou-o fortemente para perder os sentidos (um jogo muito popular à altura entre embarcados de longa duração). Helga Liné costurava os fatos, Antonio fundia os metais, Alfonso polia e soldava quando necessário, Fernando coordenava os trabalhos, Juan acondicionava os tubos do ar, Gavian anotava perguntas complexas no caderno de Napoleão, para que ele continuasse a desenhar esquemas no quadro e não interferisse no processo construtivo, Tina assistia a tudo com muita atenção e sem dizer uma palavra - sempre que alguém se sentia ignorado, e portanto mais triste, olhava para Tina, que respondia com um encorajador sorriso.
Às 10 da manhã o grupo saía para ensaiar o escafandro na lagoa funda, mas não sem antes deixar escrita uma série de questões, envolvendo geologia, geografia, geometria, filosofia, psicologia, matemática, física e química, medicina, ventriloquismo e equilibrismo, de modo a que Napoleão continuasse os seus esquemas sem interferir nos treinos.
Às 11 da manhã o grupo parava para recompor a barriga, comendo preferencialmente favas e cubos de carne de frango, acompanhadas de vinho branco.
Às 11.10 mergulhavam Alfonso Vallejo, o professor primário, na lagoa com o escafandro vestido.
Às 13.00 recolhiam Alfonso Vallejo, retiravam as anémonas e as estrelas do mar agarradas ao fato.
Depois de almoçarem, passavam o resto do dia a jogar futebol, com a cabeça do escafandro a fazer de bola.
Tudo isto conta o velho entre uma e outra bafurada de fumo. Despedimo-nos, justificando urgência em chegar ao mercado antes do seu fecho, e viramos costas.
-Este é um dos maiores trapaceiros de Hispéria, deste tempo e do outro também - diz o tio Alcides. - De seguida dirá que tem em sua posse o livro do escanfandrismo com cópias de todos os esquemas de Napoleão, e que, como precisa muito de dinheiro, está disposto a vendê-lo por uma quantia justa, à volta de 15,000 euros. Já vendeu muitos livros de escafandrismo a viajantes de leste, sobretudo, que apreciam muito a arte do escafandrismo. Não são mais do que cadernos gatafunhados pelo sobrinho, um idiota chamado Armand Rafael, inspirados num documentário que passou na National Geographic. Já tentou vender-me o livro centenas de vezes e mais algumas.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Factos desconhecidos

Yuri, o russo que habita a entrada do prédio onde Juan está sentado, grita do escuro: "Há factos desconhecidos, como por exemplo este."
- Este sobreviveu ao câmbrico. Terá valido a pena? - pergunta Juan.
Despedimo-nos do velho Juan com o cubano na boca, a soltar bolas de fumo. "Nem todas as viagens têm finais felizes", diz o tio Alcides.

O sonho do irlandês

- A caixa craniana de um irlandês é medida por vulgar fita métrica. A caixa craniana de uma irlandesa é medida por vulgar fita métrica. O sonho do irlandês está contido nuns quantos centímetros de ossos. O sonho da irlandesa está contido nuns quantos centímetros de ossos. Hi Ho! O sonho do irlandês está contido nuns quantos centímetros de ossos. O sonho da irlandesa está contido nuns quantos centímetros de ossos. Hi ho!

Adam Smith, antigo trovador do pub irlandês Black Horse, canta uma velha canção celta sobre a ascensão da ciência matemática. Adam largou Waterfoot, um vilarejo perto de Dublin, e chegou a Hispéria no dia 15 de Agosto de 2011, dia de Nuestra Irmanita de las Velas, dia dos condenados. E por isso ali está ele, Adam Smith, músico de 32 anos, pai de uma filha que não conhece, e que nem sequer sabe existir, fruto de uma noite de cervejas com Nana, a cozinheira francesa da duquesa de Cornwell, a cumprir a penitência ditada pelo destino. (A filha de Adam Smith tem 10 anos, chama-se Anna, e neste momento corre furiosa atrás de uma borboleta nos campos de Hellwood; aos 6 anos desenvolveu um apetite voraz por cabeças de insectos, principalmente grilos e borboletas. A sua boca cheira a bichos mortos.)
O velhote sentado no caixote da fruta expele fumo do cubano e olha por cima da minha cabeça.
- Amigo, assim tapa-me o sol.
Afasto-me para o lado. O tio Alcides, que tinha ficado para trás por força do peso da barriga, chega-se à conversa.
- Amigo Juan, que prazer rever-te!
- Amigo Alcides, como vai o meu amigo?
- Muito bem, amigo Juan - trava o sorriso, baixa-se e desce a voz.
- É mais um câmbrico, amigo Juan?
- Si, si, si. Mais um câmbrico.
O tio Alcides acena a cabeça lamentando a sorte de Adam Smith.
- Pobre diabo.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Pequenos apontamentos sobre os peixes de Hispéria

peixe cidade
1. Os peixes de Hispéria não se deixam pescar a não ser através de uma técnica específica dominada por poucos (E esses poucos são realmente poucos: o professor Garvan, que pela manhã come pimentos padrón com açúcar, e a sua mulher, Adrize, que prefere compota com queijo de cabra.)
2. Os peixes de Hispéria não se deixam pescar a não ser a horas próprias.
3. Os peixes de Hispéria não mostram grande respeito pela abordagem tradicionalista à mitologia da pesca, embora sobre o assunto prefiram guardar reserva.
4. Os peixes de Hispéria são azuis e amarelos como tantos outros animais que existem sob e sobre o mar, com excepção do lobo ibérico, do gnu, da lebre americana e do bufão pardo, que não querem ouvir falar em senhoritas rodando sombrinhas.
5. Os peixes de Hispéria não se deixam pescar quando as crianças choram nem quando se canta o bolorento hino de Hispéria, composto pelo maestro Javier y Javier, especialista em mitologia da música.
6. Pescar os peixes de Hispéria foi assunto tratado e discutido 20 anos atrás em Hispéria; Garvan e Adrize saíam sempre vitoriosos das discussões e por isso os peixes de Hispéria deixaram de ser falados.
7. "Fui pescar!": eis o que deve ser anunciado por alguém que regressa da pesca.
8. Os peixes de Hispéria entram na categoria "peixe urbano" quando vendidos no supermercado.
9. Não havendo mar em Hispéria, os peixes de Hispéria nadam livremente nos espaços restantes.
10. "Os peixes de Hispéria são cabrões", é a difamação mais comum a que estão sujeitos.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Viajar com o coração fora do corpo

coração - esquemaO meu tio não gosta de viajar sozinho. No entanto, por maioria das vezes a que a companhias viajadas se refere, invoca algo assim:
- Gosto de viajar sozinho! - esta é a voz dele. Queira o leitor aproximar-se mais, apenas um pouco mais, assim está perfeito, e atente: além do pigarrear britânico do meu tio, medalha colada ao peito durante uma noite de tempestade maldiviana imensa, sentirá o leitor um certo amargo, uma certa tristeza e uma subtil saudade dos portugueses que só assim, quase rosto no rosto, se sente. Desta forma terei feito de si, caro leitor, cúmplice para denodar o tio Alcides da convicção com que afirma gostar de viajar sozinho. Dizem os mais próximos que tal se deve aos encantos defuntos por uma amantíssima princesa saudita, avistada num palácio de pedra da Mesopotâmia e que nunca mais apartou do pensamento. Sara Sudairi era o seu nome. Suicidou-se num penhasco onde as águias nidificam. Era louca, de acordo com o registo médico que tive a oportunidade de consultar livremente, por amabilidade do rei Abdulah. Esquizofrenia, para o médico. Alma livre, para o rei Abdulah. A consistência dos passos humanos pesaria muito na alma frágil da princesa e por isso atirou-se do penhasco, convicta de que a força das suas asas a levaria aos céus - assim me explicou o rei. Sara foi a primeira paixão do meu tio, e foi fulminante. Viajar sozinho transformou-se numa fatalidade e também numa fuga ao buraco no peito onde Sara estivera, quando dantes era uma fúria e um sangue que inflamava as veias. Terá sido aí, na paixão não cumprida por Sara, que nasceu esta portugalidade do meu tio, esta rouca quase muda saudade e esta dolorosa e paradoxal necessidade de viajar sozinho. Mas ninguém tem a certeza. Eu não tenho.
- Gosto de viajar sozinho! - exclama o meu tio.
- Não tenho a menor dúvida disso, meu tio! - respondo-lhe. E seguimos.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Os viajantes do tempo

morrison house hispéria
Encostados à parede da igreja de Paula Mónica repousam 5 viajantes do tempo. As roupas, apesar de comuns a todos os viajantes do tempo, surpreendem sempre os olhos de quem as vê: um manto vermelho vivo como sangue cobre-os da cabeça aos pés, as botas reforçadas a aço espelham o sol da tarde de Hispéria e um colar de ossos de foca enfeita rudemente o pescoço. Não falam com ninguém a não ser entre eles. De nada adiantaria, ninguém percebe o que dizem, apesar de saberem todas as línguas do mundo, as que morreram e as que sobreviveram. Viajam desde sempre. O meu tio Alcides avistou-os pela primeira vez aos 14 anos, conta-me. "Punha-se um fim de tarde em rebuliço no Norte de África, junto à fronteira de Marrocos com a Algéria. Um vento fortíssimo soprava do deserto, não um vento sujo de areias como seria de esperar, mas um vento quente que se sentia junto à cara e que acariciava as faces açoitadas da tarde quente. O meu pai e o companheiro de viagem, o bom lord Andrew Morrison, resolveram assentar arraiais porque a noite prometia gelo férreo. Entre guias, carregadores, fotógrafos, escribas e alguns jornalistas, a comitiva contava umas 50 pessoas para 200 camelos. E foi então que os vimos. Começaram por parecer luzes ténues e hesitantes como as primeiras estrelas da noite, para se tornarem intensos focos de luz, e por último 5 pequenos sóis que brilhavam e brilhavam à medida que de nós se aproximavam. Da duna onde os avistámos, a cerca de 2 quilómetros, até à caravana, demoraram 30 segundos exactos, cronometrados pelo relógio do bom lord Andrew Morrison. E tão depressa chegaram como partiram. Passaram pelo meio da caravana falando alegremente e rindo alto. Ignoraram-nos como o deserto nos ignora a nós, e prosseguiram um caminho só deles sabido. Levaram com eles o horizonte porque anoiteceu abruptamente. Lord Andrew Morrison julga ter distinguido uma frase em língua ilíria, que poderá ser traduzida por algo como "segue sereno o rio para no mar morrer", mas pode ter sido o vento soprando de modo caprichoso."
Apenas em Hispéria encontramos viajantes do tempo a repousar. Segundo dizem, a sua chegada levanta o céu vermelho do Câmbria, e até o terno escuro da noite hisperiana se pinta de clarões vermelhos como brasas perdidas na borralha.

domingo, 15 de julho de 2012

O meu tio Alcides

Quando em passagem por Hispéria, o meu tio Alcides julga antever na igreja de Paula Mónica a salvação do mundo. Encostado às suas malas, admira a ostentação frágil do edifício: "Ali mandaria, na vez de um rei gordo e de um vassalo igualmente gordo, construir uma janela ampla; ampla como um rio, ampla como a savana de África; enfim, ampla e arejada, que este sítio bem precisa de melhores ares e horizontes". É muito difícil encontrar o meu tio. Há muitos tipos de viajantes, ele é do tipo imprevisível, podemos encontrá-lo num acampamento nómada atravessando o deserto salgado acompanhado por uma mulher cheia de ossos e duas crianças de olhos verdes, como de seguida estará em Nova Iorque a fotografar os falcões do Central Park. Viaja para salvar o mundo, diz.
- Quando tudo isto acabar, nada mais restará do que a memória do mundo.
Fecha os olhos, eleva o nariz e a voz, e o seu bigode de explorador de finais do séc. XIX oscila na brisa da tarde. Detém-se dois segundos e retoma a conversa.
- O grande mal do mundo está representado nesta igreja, através do rei gordo e do vassalo pançudo. A este mundo falta perder barriga. Os índios Tupiara-Cotapaca, do interior da Amazónia, cultivam um fungo no interior de árvores gigantescas para as ingerir em forma de sopa, dizem curar os inchaços causados pelas feitiçarias. São um povo saudável e não há barrigudos nem gordos entre eles; nem entre eles, nem entre todas as tribos de índios num raio de milhares de quilómetros. Talvez também nós precisemos de algo assim para exorcizar os nossos excessos e rasgar estes horizontes tão apertados, talvez também nós tenhamos de aprender como perder barriga, para que possamos olhar o mundo sem ter o umbigo no campo de visão.
Coloca as mãos na cintura e arqueia as costas para trás. A sua barriga desenha uma sombra proeminente na calçada da rua.
- Em Guachape, no México, o meu bom amigo Galvez confessou-me correr todas as manhã, quando lhe invejei a forma física. Um hábito bastante tonto, respondi-lhe, seria espúrio praticar jogging no meio de bisontes logo pela manhã, correndo o risco de ser atropelado, ou podendo atropelar algum mais descuidado. O bom Galvez... Sonhou um dia casar em Monróvia, e foi o que fez. Um bando de rebeldes estragou-lhe a boda, e assaltou os carros da comida. Mas cumpriu o sonho. Um bom homem, o Galvez.
Muitos africanos entram na igreja de Paula Mónica para pagar promessas. Um liberiano transporta uma cabra às costas, 5 crianças giram em torno dele, e mais atrás uma gravidíssima mulher vestida de farrapos arrasta-se em dores - as águas acabaram de rebentar e o líquido amniótico escorre pela rua.

sábado, 14 de julho de 2012

O tuareg e Aqutur

A minha profissão?, perguntei-lhe. O homem olhou para mim e respondeu: "Sim, a sua profissão. Vai dizer-me que não possui nenhuma?" 100 metros à frente fica a Igreja de Paula Mónica -  é de Paula Mónica na verdadeira acepção da palavra, porque foi ela que a construiu aos longo de 20 anos. As coloridas ruas de Hispéria foram tomadas esta tarde por caminhantes africanos. Consigo distinguir dois senegaleses arrastando um saco enorme, um dele fala muito alto e esbraceja como um perdido, o outro mostra os dentes suados e encosta-se à parede; mais à frente distingo três etíopes, caminham mais rapidamente do que toda a gente (e talvez mesmo mais rapidamente do que as velocidades combinadas dos outros transeuntes), um veste vermelho, e outros dois vestem verde e transportam galinhas na cabeça - as galinhas agitam-se e tentam furtar-se ao agarro dos etíopes, só algumas penas são bem sucedidas; duas marroquinas arrastam um carrinho cheio de carpetes douradas, uma delas para um pouco, encosta-se a uma montra e bebe água de uma garrafa partida, e a outra grita por ela zangada; um grupo de 10 angolanos paira muito vagarosamente sobre o chão como se o filme estivesse demasiadamente acelerado para eles, vestem fatos pretos e camisas brancas, embora estejam descalços, e alguns usam óculos de sol brancos ou amarelos; os sudaneses são os mais furtivos, é muito raro conseguir fixá-los durante mais do que 10 segundos, logo de seguida desaparecem misteriosamente e aparecem noutro ponto da rua, e depois voltam a desaparecer; está ali uma moçambicana, come uma batata crua e abana as coxas como se batesse num tambor. A minha profissão?, pergunto de novo. "Sim, a sua profissão. Vai dizer-me que não possui nenhuma profissão?" É um tuareg cego, estica a mão direita muito devagar para não correr o risco de a partir contra uma superfície dura, e a esquerda alonga-se para trás, não vá por qualquer motivo perder o equilíbrio  de tanto esticar a direita. "Qual é a sua profissão?", insiste. "Nenhum  de nós possui uma profissão, apenas Aqutur possui a profissão e, por sua vez, e porque Aqutur devolve o que possui, a profissão possui Aqutur." E afasta-se. Avisto um sudanês. Já não.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O mundo inteiro

Flávia tem razão, a canalização da estalagem é um pesadelo. Não consigo tomar banho sem que a água falhe duas vezes ou sem que a água se engane na mistura e venha, alternadamente, gelada e escaldada. Alvarez ficou hoje de me entregar um livro com a minha árvore de família completa, que o faria com gosto, que não é todos os dias que encontramos um ramo da família perdido, etc. Alvarez passou a ser o meu familiar mais próximo num raio de vários quilómetros. Pelo menos até encontrar o meu tio. Confirmou vir ao meu encontro amanhã pela manhã. Marcou para o mercado de Hispéria, junto às frutas tropicais. Diz sentir-lhe a falta, e em mais lado nenhum se compra fruta assim: abacate da Guatemala, ananás do México (de um vilarejo chamado Blanconobes), acerola das Antilhas, cacau da Amazónia, groselha preta e jatobá do Brasil, entre muitas outras. As vendedoras vestem a rigor: saias berrantes a roçar o chão, chapéus elegantes de palha adornados a penas de pavão e colares de conchas do mar.
Pergunto à Flávia se nunca mandaram arranjar a canalização. Ela responde que sim, a um venezuelano que passou o tempo a dormir.
- Mas não há venezuelanos emigrantes.
- Estamos em Hispéria. O mundo inteiro passeia nestas ruas.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Josefina de la Cruz e Jesus

É o seu nome. Vive nas águas-furtadas de um prédio servido por um supermercado argelino. Detesta camélias e detesta chá de limão. Gosta de morangos e gosta de flores de maracujá - afirma com convicção serem as flores mais belas do mundo. Foi abandonada aos 53 anos pelo marido, Eduardo Afonso de la Paz, durante uma tarde triste de inverno. Os pássaros ainda voaram durante a manhã, explica-me. Durante a tarde morreram todos. Toneladas e toneladas de pássaros foram varridos do chão, e camiões carregados de pássaros mortos fizeram viagens durante uma semana. Foram levados para longe da cidade e queimados. Nunca mais o vi, o Eduardo. Foi visto por uma sobrinha no norte, a cerca de 300 quilómetros daqui, agarrado a uma estrangeira. Ainda lhe sinto a falta, entristece Josefina. Tem 89 anos e um talhão comprado no cemitério da cidade. Não quero ser queimada como um pássaro, diz.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Cronologia dos eventos recentes


21 de junho de 2012
Chegada a Hispéria e alojamento na estalagem Caliente y Fría.
Conheço Alvarez, o segurança-mitologista, que me aconselha a visita ao senhor García.

24 de junho de 2012
Encontro o senhor García, especialista em mitologia contemporânea, por um feliz acaso, no parque, enquanto jogava póquer com outros 3 velhotes. O senhor García diz saber quem eu sou e que não deseja falar comigo. Um dos 3 velhotes cospe para o chão, outro acena solenemente com a cabeça em sinal de concordância, e o outro mija-se nas pernas. “Cabron!”, exclama ele.

25 de junho
Flávia mostra-se muito interessada em saber quem eu sou e o que faço ali. Normalmente, explica ela, as pessoas não ficam mais do que 3 noites porque a canalização está sempre avariada.

26  de junho de 2012
Flávia continua muito interessada em saber quem eu sou e o que faço ali. Normalmente, explica ela, as pessoas não ficam mais do que 3 noites porque a canalização está sempre avariada. Sorri e esconde a cara. Os porcos furiosos do Angry Birds riem alto. Flávia exclama: “Cabron!”

27 de junho
Flávia faz questão de me mostrar a cave da estalagem.
Visito o museu da cidade, ou museu das chaminés, como é vulgarmente conhecido. Farei a sua descrição mais à frente.
Janto num restaurante chamado Ballet. As empregadas e os empregados de mesa, numa pausa da refeição, dançam um belíssimo bailado que emociona os clientes.

29 de junho de 2012
Alvarez enumera a minha genealogia e conta a história dos seus antepassados.

3 de Julho de 2012
Flávia convida-me para jantar na sua casa. Prepara-me tortilla e serve-me vinho. Mostra-me um sinalzinho na sua coxa direita e a seguir fazemos sexo.

5 de Julho de 2012
Flávia fala-me de Oliver. 2 cães atacam-me na rua. Uma velhota é atropelada por um inesperado tractor. A velhota insulta o tractorista. O tractorista é hospitalizado por suspeita de ataque cardíaco. A velhota conduz o tractor de volta aos campos agrícolas. Choveu durante a manhã.

terça-feira, 10 de julho de 2012

A relação de Morales com a poesia e com os poetas

Morales mora na Calle Ballada Amarilla 4 - assim chamada por homenagem a Federico García Lorca, que para ali mandou as suas urinas em exame, ao laboratório "La Orina Purina", e obteve resultados inconclusivos: 
Apariencia: 
color amarillo claro. 
Causa:
Diabetes insípida o abundante ingesta de líquidos diluidos.
De resto, e tanto quanto se sabe, Lorca nunca visitou Hispéria a não ser através da urina.
Morales detesta poesia e detesta poetas, e faz questão de o afirmar logo que se levanta. "Lorca foi um cabrão. Lorca é um cabrão. Lorca será sempre um cabrão", grita Morales pela janela. De seguida, dirige-se à casa de banho, urina e verifica a cor. "Lorca é um cabrão", suspira aliviado.

Chama-se a isto verão

Chama-se a isto verão. Catarina foi embora numa tarde de pleno agosto. Catarina não voltou. Chama-se a isto verão. Há muitos viajantes em Hispéria. De uma forma ou outra, todos somos viajantes, diz Flávia. Catarina e Flávia nasceram em Gondantes, um crescimento imberbe de casas pretas como as nuvens de inverno e de outono, e passaram a meninice juntas como se tivessem nascido no mesmo corpo. Flávia encosta-se ao fogão, mesmo ao lado do O-li-ber, passa as mãos nas folhas e recrimina-se por não lhe dedicar mais cuidado. Qualquer dia não dá mais pêssegos, diz. Dois anos atrás, no mesmo ano em que a Catarina partiu, soluça contidamente Flávia, o O-li-ber produziu quase 2 quilos de pêssego, o que é um esforço invejável para esta árvore que, embora viva e saudável como nenhuma outra, não passou ainda a infância das árvores. A Catarina trabalhou dois anos na estalagem como ajudante de cozinheira. Diga-se que era a maior trapalhona das trapalhonas das ajudantes de cozinha. Conseguia partir 2 a 3 caixas de ovos de seguida. O senhor Morales, o cozinheiro, um inexplicável mexicano em viagem pelo mundo, e que parou para ganhar fôlego em Hispéria, gritava-lhe muito, gritava-lhe tanto que perdia a voz. A Catarina chamava-lhe "cabron" e gritava ainda mais alto do que ele, e depois iam beber uma cerveja à rua. Chama-se a isto verão. Foi a última coisa que a Catarina me disse.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

O quintal de Alvarez

can tunaO quintal de Alvarez é constituído por duas parcelas simétricas: a primeira é dedicada à plantação de batatas. São batatas turcas, explica, trazidas pelos avós dos avós dos avós de Alvarez. Tudo no discurso de Alvarez diz respeito aos avós dos avós, e conta mesmo que não havendo memória de mar em Hispéria os bivalves não mentem: a verdade é só uma, em tempos houve mar nesta terra. De seguida conta a história dos primeiros viajantes que aportaram em Hispéria. Por mar, claro está, conta Alvarez. Eram animais pequeninos, soprados por uma vaga fortíssima de leste. Tal como os humanos, partilhavam segredos e anotavam mentalmente as respectivas genealogias, de modo que a ligação entre genealogia e memória começou aí, com esses animais pequeninos. Entretanto muda o sentido do discurso para falar da sua dieta, referindo que leva muito a sério os seus 120 quilos e que todas as manhãs come 5 pães com café. Ou então com leite. A outra parcela do terreno é dedicadas a investigações, e coloca um ar bastante solene quando diz "investigações". Com pás, picaretas e outros instrumentos de perfuração investiga o solo de Hispéria. Coisas muito importantes estão nesta terra, diz de olhos fechados. Nos anos que leva de investigações encontrou 2 latas de atum de uma fábrica entretanto falida chamada "Amor del Atún", uma boneca de porcelana com uma perna partida e um ramo de oliveira dentro, de olhos pintados a tinta da china e com um lenço na cabeça onde se pode ler "Muñeca Tonta"; encontrou também uma embalagem de lixívia da marca Neoblanc e um saco de lulas podres. Foi muito complicado perceber a que árvore pertenceria o ramo na boneca, e por isso recorri ao senhor Joaquín, especialista em mitologia botânica. Somos assim em Hispéria, mitologistas e viajantes; e alguns viajam no próprio quintal. Estou muito contente com as minhas investigações, é um processo bastante enriquecedor. Alvarez sorri.

sábado, 7 de julho de 2012

Pequeno apontamento sobre o mar de Hispéria

Não há mar em Hispéria. Não há mar na memória dos habitantes de Hispéria. O mar não existe. O mar é uma história contada pelos avós dos avós dos habitantes de Hispéria. O mar é a memória da memória dos habitantes de Hispéria, podemos dizê-lo assim.
Os bivalves que crescem nas paredes das casas de Hispéria não partilham do facto: resistem não apenas a um facto observável como também à memória de um facto. Quando muito, os habitantes de Hispéria e os bivalves encontram-se na memória da memória. E isso é todo um mar.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Flávia

Flávia cultiva um jardim suspenso em casa. Através de um sistema que envolve muitas cordas, muitos pregos e muitos vasos, debruçam-se gerânios e begónias do seu tecto; um raminho de salsa espreita por cima do armário do pão e dos pratos; um pessegueiro anão frutifica entre a pia e o fogão. Chama-se Oliver. Flávia diz Oliver muitas vezes. Oliver é a sua palavra preferida, se assim o podemos dizer. Muitas pessoas usam uma interjeição ou uma asneira quando algo não corre bem, Flávia socorre-se de Oliver. O-li-ber: dito pela Flávia. E O-li-ber é o seu pessegueiro. As folhas do Oliver concorrem com o detergente da louça e com o bico do gás. Aquilo eu nunca uso, explica com desdém. O O-li-ber não gosta muito de calor, fica um ano inteiro sem florir se cozer batatas ou fritar uma salsicha. O-li-ber, repete a Flávia. Os morangueiros vermelhos escorrem pelas portas dos armários e no centro da cozinha, isolada, uma nespereira padece de doença terminal. Chama-se Olivia. O-li-bi-a, repete a Flávia. Foi-me oferecida pelo Pietro. O maldito. O-li-bi-a, repete a Flávia. Não tenho esperança na Olivia. Nasceu frágil, morrerá frágil. E se morrer, morreu. Não vou sentir-me triste por causa de uma nespereira. Tristes devemos sentir-nos pelas pessoas. Como pela Irene, a Velha, que morreu por causa de uma pneumonia e por causa do frio. Mais por causa do frio do que por causa da pneumonia, pois sem frio não lhe tinha chegado a pneumonia.
Os seios da Flávia refrescam as mãos como pêssegos primaveris.
Choveu em Hispéria esta manhã, e as pessoas sorriem e saltitam. Hispéria é uma cidade seca e escura. Há nuvens mas nunca chove.