Hispéria (ou Hespéria) 1. Uma das ninfas inácides concebidas pelo potâmoi Ínaco 2. Hispânia ou Península Ibérica (Hespérica), tal como referida por Camões 3. Cidades dos Estados Unidos da América (Califórnia e Michigan) 4. Asteróide descoberto em 1861 por Giovanni Schiaparelli 5. Espécie de insecto (Aphaenogaster hesperia) 6. Espécie de gastrópode (Inodrillia hesperia) 7. Região do planeta Marte (Planum Hesperia) 8. Espécie de borboleta 9. Jornal (Hesperia) académico de Arqueologia 10. Cidade da Península Ibérica para onde confluem viajantes de todas as partes do mundo e centro mundial de estudos em mitologia (Hispéria).

sábado, 30 de junho de 2012

Ao fundo, o monte dos castanheiros - desenho

hispéria monte

120, os quilos de Alvarez


Alvarez apressa-se atrás de mim pelas escadas, ouço o silêncio de 120 quilos a castigarem os degraus.
- Espere um pouco, por favor.
O rapaz de não mais de 18 anos da recepção acompanha-o. Depois de se assegurar que ele me encontrou, dá meia volta e volta para o posto de trabalho.
- Chama-se Henrique Luz? - pergunta ele.
Franzo o sobrolho.
- Desculpe a pergunta, o rapaz mencionou-o quando falávamos dos clientes...
- Chamo-me Henrique Luz - respondo-lhe.
- Tem um irmão chamado Afonso Luz e uma irmã chamada Anabela Luz, não tem? É filho de Manuel Pereira Luz e de Acácia Silva Melo? Os seus avós paternos vivem em Évora?
Respondo-lhe que sim. Ali estava eu, a 400 quilómetros de casa, sem ligações a ninguém, e aquele homem atarracado a recitar a minha genealogia, até chegar a parentes que nunca tinha ouvido falar e a graus de parentesco que não sabia existirem. Alvarez sorriu e soprou como que cansado. Disse qualquer coisa sobre a sua memória prodigiosa e sorriu ainda mais. O seu dente reflectiu a luz amarela da lâmpada em forma de vela.
- Em Hispéria somos muito dados ao estudo das mitologias, a minha especialidade são as mitologias familiares.
De seguida explicou-me com grande detalhe as suas próprias origens, remontando ao séc. IV. Os seus antepassados tinham fugido a uma invasão de animais selvagens junto à orla marítima onde é a actual Turquia, atravessaram os Estreitos Turcos e instalaram-se em Itália. Dedicavam-se à olivicultura e sempre geraram famílias numerosas.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

18, a idade do recepcionista


Passava das 2 horas da madrugada quando acordei. A televisão ligada sem som noticiava um incêndio numa fábrica de alcatifas, 2 bombeiros levavam 2 crianças asiáticas pela mão. O presidente apelou à abertura de um inquérito para que viessem a apurar-se as causas do incêndio, e quando questionado sobre a presença das crianças asiáticas no interior da fábrica referiu que essa era uma questão prioritária. De seguida retirou-se, os jornalistas ainda lhe perguntaram sobre o escândalo sexual envolvendo o vereador do turismo e o vereador da área social, mas o presidente desapareceu dentro do carro de vidros fumados. 2 horas e 25 minutos da manhã para ser exacto. Tenho fome, desço as escadas. Na recepção está um rapaz de não mais de 18 anos, fuma um cigarro às escondidas que esmaga com os dedos por baixo do balcão; o queixo treme da queimadura.
- Boa noite, senhor – cumprimenta.
- Boa noite. Onde posso encontrar comida?
- Temos uma máquina na sala de visitas. As bebidas posso eu vendê-las, senhor, a máquina avariou na semana passada.
Pergunto-lhe se conhece Rosita da loja de velas e cortinados. Ele responde que não, que quem deverá conhecê-la é Alvarez, o segurança; já trabalhou na associação dos comerciantes e prestava serviço em muitas lojas e conhece todos os comerciantes e lojistas de Hispéria. Alvarez é um homem atarracado e com mais de 120 quilos. Encontro-o à entrada. Informa-me que a loja da Rosita fechou dois anos atrás, fugiu para a América, não se sabe se do Sul se do Norte, com dívidas por pagar. Pergunto-lhe que poderiam ter de tão especial os beijos de Rosita para que me tivessem sido aconselhados pelo dono da taberna El Caballo. Embaraço-me com a pergunta. Ele encolhe os ombros e diz que não sabe. Refere-me porém o professor García, especialista em mitologia Hisperiana, especialidade que começou com a descoberta de dezenas de cemitérios antigos por toda a cidade, e desde então tem criado as mais diversas ramificações: mitologia culinária, mitologia urbana, mitologia ancestral, mitologia habitacional, etc.. O professor García é mestre em mitologia contemporânea e ele será o homem certo para me falar de Rosita, assegura-me. Agradeço e despeço-me. Subo as escadas.

sábado, 23 de junho de 2012

2, as fontes secas

velas y cortinados
A rotunda na entrada sul da cidade aponta 4 destinos: zona comercial, zona habitacional, zona desportiva, zona industrial. Hispéria é conhecida por ser a cidade escura, lugar nenhum de Espanha se ilumina com esta luz. Formada numa depressão geográfica, onde antes fora o gigantesco e mítico lago Eerpéria, é rodeada a norte pelo monte Rubia, de tonalidade amarela seca da terra; a oeste pelo monte Torre, parecendo formar na crista um conjunto imponente de ameias; a leste pelo monte Slevo, viveiro natural e inexplicável de castanheiros em estado selvagem; e a sul pelo deserto Câmbria, de onde acabo de chegar ao fim de sete secos dias. Segundo o dono do El Caballo, se quero conhecer Hispéria devo beijar Rosita da loja de velas e de cortinados, e dançar flamenco com Juanita, que poderei encontrar durante a noite, se tiver sorte, junto ao antigo coliseu romano, dançando e encantando os velhotes ricos da cidade, assim como os emigrantes desavisados que julgam Hispéria pela Espanha das touradas. Manda-me porém o moedouro dos ossos que encontre a Calle del Agua. A Calle del Agua tornou-se durante o séc. XVI um importante local de repouso mercê das suas nascentes de água, um delas quente e a outra gelada, que brotavam com toda a naturalidade do chão. De lá para cá as nascentes secaram, e restam agora dois blocos de cimento assinalando o lugar das nascentes. Em Hispéria tudo secou, o lago mais cedo do que as fontes. Chego à estalagem Caliente y Fría e pergunto se há uma cama livre. A recepcionista, que virei a descobrir chamar-se Flávia, estende a mão para o chaveiro e diz pouco interessada, quarto 8, no cimo das escadas, à direita no corredor, mandarei a empregada servir toalhas, boa estadia, enquanto continua concentradíssima no seu iPad, jogando Angry Birds. Ahau, chilreiam os pássaros furiosos. Enquanto subo as escadas, ouço o riso cínico dos porcos e o desalento da Flávia. Perdeu. Entro no quarto, tranco-me por dentro e deito-me na cama. Talvez Rosita abra a loja durante a noite. Apago.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

1991, ano da edição de Nevermind


el caballo tabernaEm 1991, ano da edição de Nevermind, o Bairro Pollente transformou-se num lugar de peregrinação para os admiradores dos Nirvana. A própria banda visitou o Bairro Pollente e ofereceu um poeirento concerto que transformou o sujo bairro numa colossal montra de flanela e calças de ganga rasgadas. 21 de junho de 1992. 10 anos atrás. Chico Fuentes, o anão dono da taberna El Caballo junto à estrebaria de Alveriana, garante: Não me faltam clientes por causa da chuva salgada, muitos levam o pão com tomate para a rua e põem a mão fora do alpendre, dizem que faz bem aos males de fígado e de caganeira. Não me faltam clientes por causa da chuva salgada, repetiu enquanto despejava uma garrafa de vinho no meu copo de vidro estalado, uns quantos dormem ali mesmo na estrebaria, e aponta lá para fora. Um cabrão de Madrid cheio de saburra na cara, um problema de pele qualquer que diz ter apanhado na Guerra do Golfo – um cabrão que nunca foi à Guerra do Golfo -, veio a mando de um António Guerra, um cabrão que vendia armas aos terroristas do Médio Oriente, para procurar alívio para a comichão e solução para a feiura. Passou duas noites e dois dias ao relento debaixo da enorme tempestade de 1995. Acabou com a cara desfeita. Morreu dois dias depois no Hospital de Hispéria. É uma chuva traiçoeira como um remédio, pode matar-te se for a mais.

28, o número de mortos nas minas


mina alveriana
Cheguei a Hispéria no sol abrasador de 21 de junho de 2012. Nos últimos dias ameaçou cair uma tempestade salgada e o cheiro iodado das nuvens altas e negras esvoaçava como roupa pela altura da montanha. Puxei o pano do bolso e sequei-me novamente. O pó da estrada baralhado com a humidade salgada formava pequeninas gotículas como unhas de crias de gato prontas a espetarem-se na pele. As tempestades salgadas começaram nos anos 90, no auge do grunge, quando nas ruas da pequena cidade vizinha, Alveriana, os jovens dos bairros pobres, furiosos pela opulência dos donos das fábricas de sal, invadiram as minas até às profundezas e estoiraram com elas à força de explosivos. Eram 28. Morreram 28. Dizem isso: o sal da mina subiu ao céu assim como o sal das lágrimas das mães e o sal das lágrimas das avós e nunca mais parou de chover água salgada.