Hispéria (ou Hespéria) 1. Uma das ninfas inácides concebidas pelo potâmoi Ínaco 2. Hispânia ou Península Ibérica (Hespérica), tal como referida por Camões 3. Cidades dos Estados Unidos da América (Califórnia e Michigan) 4. Asteróide descoberto em 1861 por Giovanni Schiaparelli 5. Espécie de insecto (Aphaenogaster hesperia) 6. Espécie de gastrópode (Inodrillia hesperia) 7. Região do planeta Marte (Planum Hesperia) 8. Espécie de borboleta 9. Jornal (Hesperia) académico de Arqueologia 10. Cidade da Península Ibérica para onde confluem viajantes de todas as partes do mundo e centro mundial de estudos em mitologia (Hispéria).

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Joleen



Joleen nasceu e foi criada na Dakota do Sul, Estados Unidos da América. Não conhece uma única casa por lar. Durante toda a vida vagueou pelo estado americano, ora ao colo da mãe, uma mulher forte como uma torre de pedra, ora assente na sua própria passada, uma passada tímida de quem não conhece as pessoas e não sabe o que delas esperar. Joleen é loira e gorda como uma búfala pequenina. Inquieta-se muito com sons. “Nunca me habituei aos sons das cidades”, justifica. Todos os sons que conhece estão na Dakota do Sul. Veio para Hispéria por conta de uma enfermeira. “Chama-se Maureen, conheci-a num vilarejo logo depois da morte de minha mãe, atacada por formigas guerreiras. Não sei viver sozinha, senhor.” Os olhos de Joleen esquecem a tarde encardida, as pessoas que passam na rua e as pombas que vagueiam estranhas nos beirais. Maureen, a enfermeira, conta mais de 90 anos e preocupa-se muito com o destino de Joleen. Enuncia, de forma ritmada, os 100 últimos países que visitou e as 300 últimas pessoas que tratou, a última das quais às voltas com uma naso-faringite - um homem que dizia chamar-se “A minha cabeça é o céu”, de uma aldeia minúscula no deserto do Botswana. “Joleen acompanha-me há 5 anos. Para nossa grande desgraça, as suas mãos não acompanham os talentos para enfermeira. Caso contrário, passar-lhe-ia, como a uma filha, tudo o que sei”. Estão em Hispéria há 3 dias e procuram Joel Ramos, mitologista vocacional, para que as ajude a encontrar o caminho de Joleen. Maureen olha carinhosamente Joleen e acaricia-lhe as faces. “Não é culpa tua, minha querida Joleen”, diz. Joleen esconde a cara com as mãos para que não se veja que chora.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Um país chamado Gonçalo M. Tavares



Muitos anos atrás, os habitantes de um país chamado Gonçalo M. Tavares, os senhores, deixaram de utilizar advérbios nas suas conversas; simplesmente deixaram de os utilizar, sem razão aparente, decreto ou notificação: esqueceram-se da sua existência, digamos assim. O que começou nos advérbios de modo, rapidamente se estendeu os advérbios de tempo e aos advérbios de lugar. Alguns senhores do país ainda os guardaram para si em silêncio, no interior das suas cabeças ou em pequeninos cofres escondidos num local remoto da casa. Os advérbios tornaram-se de tal forma raros e preciosos que começaram a gerar cobiça e inveja, e quando algum senhor os pronunciava porque se distraía corria sério risco de sofrer uma agressão e ser mesmo espoliado dos seus preciosos advérbios, ora porque lhe abriam a cabeça e os roubavam, ora porque o torturavam até que confessasse em que lugar da casa os guardava. Mas a calamidade não acabou aqui. A seguir aos advérbios, os adjectivos também desapareceram misteriosamente. Nunca mais o dia esteve quente ou frio, nunca mais as pessoas foram bonitas ou feias, tristes ou alegres, nunca mais as ruas estiverem enfeitadas, nunca mais Wittgenstein foi silencioso ou barulhento, gordo ou magro. E a seguir aos advérbios e aos adjectivos perderam-se as conjunções. Nunca mais o senhor foi beber água à fonte porque tinha sede, ou o senhor procurou uma sombra por causa do calor mas não encontrou nenhuma. Por essa altura, as ruas tornaram-se caóticas, as pessoas não se falavam por vergonha, ou se o tentavam não se entendiam, as lojas deixaram de vender porque ninguém percebia os clientes, as repartições públicas tornaram-se ineficazes, e não raras vezes um dia inteiro não chegava para atender o pedido de um senhor apenas; também os portos e os aeroportos fecharam porque ninguém sabia explicar quando deveria seguir a mercadoria, e as fábricas encerraram porque a cadeia hierárquica e todos os sistemas de controlo deixaram de funcionar. O país entrou em colapso. Por fim, perderam-se os substantivos e os habitantes esqueceram o nome das ruas, o nome das pessoas com quem falavam e o próprio nome; deixaram de saber o nome dos melros, o nome da lua e o nome dos santos. Limitavam-se a enunciar um conjunto de verbos, quase sempre no infinito, cujo sentido de nada valia. Bem poderiam os senhores gritar CORRER, SALTAR, PULAR, AGIR, que nada acontecia. Era como se os verbos tivessem perdido a capacidade de gerar ou apelar a qualquer acção. Nesse mesmo dia tudo parou e os senhores resolveram abandonar o país. Nunca em nenhum êxodo se falou tão pouco.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Jusafim



Jusafim vem de uma terra muito distante, para lá das nuvens e para lá das próprias gotas de chuva. No seu país, garante, não chove vai para 200 anos, “toda a nossa água nasce com naturalidade nas rochas da montanha”. No seu país, continua, um país pequeno onde apenas cabem ao mesmo tempo 500 pessoas, não há crianças, “todos somos velhos de rugas fundas como o esqueleto das escarpas”. Jusafim foi casado por duas vezes.
- A minha primeira mulher, a maldita Juseína, era doce como uma rola, macia como uma pena, mansa como um cachorro. Conhecia-a na festa de S. Histogiado, o santo milagreiro das galinhas, durante a impiedosa procissão dos 30 giros. Juseína fora arrastada na perdição dos amores de Adulínea, a sua irmã mais velha, por Rudolfo, um velho lobo-do-mar que comandava um não menos velho barco de pesca dos Camarões, e que conhecera durante um fogacho mais expressivo de uma tempestade em alto-mar. Tê-lo-á visto a partir do promontório de Akutiu, chefiando com grande severidade os marujos, e por ele desenvolveu espécie de paixão mística de que nem mil desencantamentos a retiraram. Juseína criou-me dois filhos e duas filhas, nenhum dos quais vejo há mais de 15 anos. Saíram de casa, todos eles sem excepção, com 14 anos, já homens e mulheres. Os rapazes são pescadores de baleias e as raparigas dedicam-se a dedilhar a harpa e outros instrumentos de cordas com grande precisão e agora tocam na banda musical das 80 ilhas, uma fanfarra potentíssima com mais de 500 executantes que percorre o sudeste asiático e mais além. Juseína fugiu, com grande mágoa minha, numa noite tão clara como o dia – o dia de Santa Iluminada. Nunca mais a vi. É como se uma parte da minha vida tivesse sumido. Ademais, levou-me todos os seus retratos, todas as suas roupas, e todas as panelas e pratos também.
Jusafim entra na sua pequena casa de adobes imaculadamente branca e de dentro traz pela mão Amaguza, uma mulher linda e altíssima de olhos verdes. Jusafim dá-lhe pelo queixo.
- Estou muito feliz com Amaguza. Conhecemo-nos há 3 meses e logo aí decidimos casar.
Despede-se de mim e entra em casa. Amaguza segue-o docilmente.

domingo, 16 de setembro de 2012

O sorriso de Ester



O sorriso de Ester alumia o mundo. Oriunda do Zimbabué, brinda quem passa à frente da sua loja com um interminável e dócil cumprimento. Marc Jacquard, o suíço que enriqueceu vendendo larvas para as fábricas - que por sua vez produzem farinha para engordar as ovelhas do exército chinês -, confessou-se apaixonado por ela no dia 24 de Março de 2009. Ester não o quis e afastou-o prudentemente como quem afasta um ferro em brasa. “Quem quer um homem sem serventia de cama?”. Ri muito alto, ri mais alto do que as paredes do prédio La Fontenarie, paredes que albergam a pequena loja de saias e aventais. “Já vendi mais saias do que agora”, confessa. “Apenas as mulheres mortas de Ostrov Petrov  as procuram. Batem-me à porta por volta das 4 da madrugada e eu pergunto quem é, sabendo de quem se trata, destranco o ferrolho, elas entram esvoaçantes e experimentam o que há para experimentar, pagam muito bem pago e saem a esvoaçar tal como entraram. Nunca pensei sobreviver a vender saias para as mulheres mortas de Ostrov Petrov.” Marc Jacquard, o multimilionário suíço, ponderou um dia deixar a mulher para viver com Ester. Ester soube das suas intenções e telefonou a Ingrid Jacquard explicando-lhe que não gostava de Marc Jacquard e que nunca houve qualquer envolvimento entre eles que não respeitasse as leis da cortesia. Ingrid Jacquard desligou o telefone, suspirou profundamente e retirou o bolo de ananás do forno. Tinha sido um dia bom: o bolo vingara como não acontecia há 3 penosos anos e François Minard, o seu amante, viera visitá-la de surpresa à casa de campo. Pelo caminho pisou uma galinha distraída.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Bill Pope, o balonista

balonismo
Bill Pope pratica balonismo desde os 9 anos de idade. Aprendeu com Andrew Pope, o seu pai. Inglês de barba branca, Bill Pope não enjeita a ideia de um dia poisar na Lua.
- Com algumas transformações, o meu balão, Old Jack, conseguirá subir aos céus, tal como descritos na Idade Média; que isto desde que instituíram a ciência como forma privilegiada de aceder à verdade deixou de ter piada. Foi esse palerma do Leonardo da Vinci e esse Nolano. Se os vejo por aí ainda lhes bato - cerra o punho e brame-o no ar.
Bill Pope aterra em Hispéria 2 vezes por ano, e durante uma semana de cada vez, para descanso do seu pêndulo migratório entre a Nova Zelândia e o Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos da América. Nas suas viagens alimenta-se de sardinhas em lata e bebe água da chuva.
- Quando tenho sede, procuro nuvens carregadas, desço e aparo a água para este barril. Foi uma técnica que o meu pai me ensinou, paz à sua alma. Quando não as encontro é que é pior.


quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O orfanato

orfanage
O sorriso loiro de Hans espreita pelo vidro fosco do orfanato. Outras 4 crianças acotovelam-se atrás dele. Quando passa alguém na rua, levanta os braços e acena e grita descontroladamente.
O orfanato tem duas gigantescas camaratas, uma para raparigas e outra para rapazes. A sua lotação total é de 100 crianças, 50 de cada sexo. Neste momento, as suas paredes albergam 51 rapazes e 53 raparigas. Enfiado num paletó chinês, o director da instituição, o colombiano Suarez, fuma uma charuto ao portão. Nadia, a soviética, como é conhecida pelas crianças, varre o pátio interior. 

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O matadouro municipal de Hispéria

tristao da cunha
Eduard Grass e Jennifer Grass, gémeos, gerem o matadouro municipal de Hispéria. E não só o gerem como matam tudo o que há para matar. A viver em Hispéria desde 2005, chegaram à cidade no dia de Todos os Aparecimentos, um dia muito celebrado. Padecem de asma e glaucoma, doenças endogâmicas comuns entre os habitantes de Edimburgo dos Sete Mares, capital da Ilha Tristão da Cunha, umas das remotas ilhas do arquipélago com o mesmo nome. Eduard Grass e Jennifer Grass sorriem muito e, sem pestanejar, abatem um boi gigante. O boi cai para o lado. Jennifer lava o animal com um potentíssima agulheta de água - na morte, os bovinos defecam com brutalidade. Eduard encosta-se a uma palete de caixas de madeira e acende um cigarro. Jennifer brinca com ele, fingindo que lhe vira a agulheta. Eduard estica o braço para trás, como que ameaçando dar-lhe uma palmada.
- Isto aqui é muito bom - diz Eduard Grass. - Em Edimburgo dos Sete Mares é um miséria: primos casando entre si, homens encornando as mulheres (muitas delas delas suas tias) com as sobrinhas... É o preço das restrições geográficas - e ri como um perdido, repetindo "restrições geográficas" duas vezes. - Isto até parece que estou na televisão a falar... é de matar a rir.
Jennifer aponta a agulheta aos pés de Eduard e molha-lhe os pés.
- Se não estás quieta levas uma palmada - diz, furioso, Eduard.
Jennifer vira-lhe as costas e volta ao trabalho.
- De modos que é isto - rebate Eduard.
Os gémeos deixarão a cidade durante o verão de 2014 e viajarão para a República da Guatemala, onde esperam empregar-se no matadouro municipal de La Nueva Guatemala de la Asunción.

domingo, 12 de agosto de 2012

Helena Vgorish

- A minha filha Helena Vgorish saiu de casa aos 10 anos de idade. Sempre me disse, ainda mais pequena do que a jarra de flores da cozinha, "mãe, hei de conhecer o mundo inteiro quando chegar aos 18". A minha filha Helena Vgorish saiu de casa há 8 anos, e por esta altura leva o mundo no peito e os caminhos da Terra nas pernas magrinhas. A minha filha Helena Vgorish completou 18 anos no dia de hoje, e por isso acendi uma velinha na janela para lhe alumiar o caminho de volta para casa. É uma boa menina, a minha querida filha Helena Vgorish.

A mulher afasta-se. O vaso fúnebre que transporta junto ao peito refulge na tarde seca.

sábado, 11 de agosto de 2012

"Ainda bem que o sol se pôs durante a manhã" - XIX Congresso de Doenças do Viajante - intervenção de Gertrude Viola (2)

- Caso Prático B - continuou a gordíssima enfermeira Gertrude Viola -, Armand Torrier. Perdeu o juízo durante uma viagem ao Parque Nacional Serra da Capivara, em busca de figuras rupestres inéditas desconhecidas por olhos humanos, com excepção dos autores, uns hominídeos insignificantes que pouco mais fariam do que desenhar figuras toscas nas cavernas.
Paul Eluird, arqueólogo e fervoroso praticante de mitologia rupestre, levantou-se de rompante e pigarreou fortemente, como que a pedir atenção. Gertrude Viola continuou.
- Ao fim de 2 meses perdido no meio daquele imensa e pavorosa pedreira, Armand Torrier sentiu uma picada numa perna e quedou-se prostrado diante de um amontoado de amazonita . Foi encontrado por Mamãe Silva e Papai Silva, dois índios tupi que por ali caçavam moscas, parando apenas para cozinhar cachupa de Cabo Verde em doses controladas, segundo informação dada pelos próprios ao Jornal de São Raimundo Nonato, "A Corneta de Nonato". A jornalista que os entrevistou, Laura Silva, emocionou-se com a tristeza dos olhos de Mamãe Silva, mas desse assunto me ocuparei no XXIII Congresso de Antropologia e Mitologia, no próximo dia 6 de setembro, nesta mesma sala.
Paul Eluird, o arqueólogo praticante de mitologia rupestre, pigarreou ainda mais alto de modo a mostrar a sua indignação. Num sus, e com um movimento cabeçal, escorraçou o carrapito do chapéu madeirense da cara, que ameaçava provocar-lhe um espirro pela forma insinuante como rondava a pedunculosa narigueta. Como não obteve apoio, ou sequer um subtil olhar aprovador, sentou-se novamente e espirrou fortemente, aliviado.
- Armand Torrier, no pico da sua loucura, gatafunhou esta imagem que agora partilho, ao mesmo tempo que gritava "Ainda bem que o sol se pôs durante a manhã".
Carregou no comando. Carregou novamente. Pediu desculpa, dizendo ser muitas vezes era atraiçoada pela tecnologia. Pediu ajuda a um assistente. O assistente estendeu a mão. Gertrude Viola entregou o comando e olhou muito interessada para a forma como o assistente resolvia o problema. O assistente carregou em 3 botões de uma forma ritmada e devolveu o comando. Gertrude Viola agradeceu e carregou novamente no botão.
- Aqui está! - disse por fim Gertrude Viola.
A plateia exclamou alto, horrorizada.

Eluird

- Anda comigo para a cama, esta mulher é estúpida - insistiu Flávia.
E saímos.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

XIX Congresso de Doenças do Viajante - intervenção de Gertrude Viola (1)

Claude Rener, conhecido por Gandalf, o cinzento, e outras vezes por Ganfalf, o branco, habita um provisório salão da embaixada da Venezuela, na rua Sessenta. Claud Rener veste como Gandalf, do livro de J. R. R. Tolkien, e viu todos os filmes de Peter Jackson. Confirma que os filmes ilustram com grande fidelidade os livros.
- O filme do Senhor dos Anéis diz muito sobre os livros de Tolkien – vira as costas e o seu manto, branco ou cinzento, arrasta-se no chão, varrendo a porcaria como se de uma vassoura se tratasse.

- Muitos viajantes enlouquecem durante as viagens e assumem uma personagem fictícia no processo; diria mesmo que esse é o principal sintoma da doença mental do viajante.
A senhora que fala no XIX Congresso de Doenças do Viajante é a enfermeira Gertrude Viola, uma colossal mulher de quase duzentos quilos, que para todo o lado se faz transportar de 4 não menos colossais malas Louis Vuitton.
- Viajar é um perigo para a saúde mental, trata-se de uma actividade de desgaste brutal, não só físico como mental, e por isso aconselho, se possível, que o viajante transporte o seu psicanalista, o seu médico, o seu psicólogo, o seu advogado, o seu assistente social ou o seu conselheiro pessoal. Na falta destes, embora com menos impacto para a saúde do viajante, aconselho a companhia de um familiar próximo, por exemplo de um primo ou mesmo, tratando-se de viajantes séniores, de um sobrinho. Nunca se sabe o que poderá acontecer in media res, um cansaço vertiginoso, uma dor de cabeça alucinante, uma febre altíssima e inquebrantável, sombras no lugar onde deviam estar coisas vistas de viva visão, uma paralisação das pernas ou mesmo dos braços, uma catatonia absurda quando se passa uma fronteira: eis a doença do viajante.
- Esta mulher é estúpida – sussurrou Flávia, que igualmente assistia ao congresso, sentada a meu lado. – Queres ir para a cama?
Levantamo-nos vagarosamente, como se demorássemos um século em cada movimento.
- De seguida, apresentarei dois casos práticos de viajantes afectados pela Doença Mental do Viajante.
“Caso prático A: Claude Rener, o viajante conhecido por Gandalf, o cinzento, ou por Gandalf, o branco. Sintoma principal e de maior relevância: simplificação da própria anatomia interna; por exemplo, o estômago e o coração, na próprio-percepção de Claude Rener, passaram a ser um órgão apenas, um “estocoração”, nas palavras do doente. Claude Rener, durante a fase aguda da doença, recusava ingerir qualquer tipo de alimento por recear que viesse a afectar-lhe a circulação sanguínea."

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Pequenos apontamentos sobre Augusto Gomes, o ortopedista da rua Cinquenta

Augusto Gomes é filho de Ernestina Guterres e de Manuel Gomes.
Augusto Gomes completará cinquenta anos durante a próxima semana.
Augusto Gomes veste capacinho preto como a noite.
Augusto Gomes gagueja aos dias de semana.
Augusto Gomes receitou sapatos ortopédicos a 4 gerações diferentes de hisperianos.
Augusto Gomes mantém consultório aberto na rua Cinquenta desde que a rua Cinquenta é rua Cinquenta (dantes chamava-se rua Calma como o mar na primavera de Axulkiehu, uma pequena cidade maia que já não existe, se a observares a partir de determinada perspectiva.)

Em Hispéria são gratos a Augusto Gomes porque:
a) endireita os pés das crianças;
b) sugeriu a dona Cândida que calçasse o sapato direito no pé esquerdo e o sapato esquerdo no pé direito;
c) casou com dona Chiquinha de Jesus, que a todos cansava com a fúria de casar.

sábado, 28 de julho de 2012

Hashir, a cidade do vento

Paul Court visitou Hashir 11 anos atrás, durante o mês de Abril, o mês das festas do ar quente e do vento. Centenas de balões de ar imponente, pintados de todas as cores, pairavam na tarde amarela da cidade desenhando sombras fugazes nas ruas e nas casas. Os habitantes de Hashir, vestidos de branco e enfeitados com asas, tecidos flutuantes ou flores de dente-de-leão, sorriam e cumprimentavam-se. A cada largo ou clareira, bandas formadas por quatro ou cinco elementos sopravam instrumentos de vento, formando uma incomensurável e caótica melodia que abraçava a cidade. Celebrava-se o ar puro e os ventos que favoreciam a pureza da cidade. Múltiplas procissões serpenteavam as ruas, por vezes cruzando-se umas com as outras. À frente seguiam as Hubhas, as guardiãs das portas dos templos do vento desde o tempo de Moisés, ou, na sua indisponibilidade, alguém por si nomeado, geralmente crianças com não mais de 6 anos,  idade a partir da qual poderiam ser dedicadas a Moisés e aos ventos divinos.
Paul Court tirou a mochila, enxugou a testa com um pedaço de pano sujo e sentou-se quebrado pelo calor. Ouvira falar muito dos prodígios de Hashir. Durante 2 ou 3 dias, em pleno inverno, a cidade é fustigada por peixes voadores do Mar Arábico que viajam centenas de quilómetros, passando por cima de outras cidades e de outros países, para encontrar a morte nas portas de Hashir. Durante a segunda quinzena de janeiro, as árvores de Hashir adquirem uma tonalidade azulada desconhecida noutras partes do mundo; chamam-lhe a "quinzena da paixão das árvores", porque as árvores parecem estender os ramos umas para as outras, como se quisessem abraçar-se. Em agosto, no pico do calor arábico, pássaros de todo o país e dos países vizinhos habitam, por minutos, Hashir; e todas as varandas, todas as árvores, todos os postes, todos os terraços, todos os telhados, todas as ruas e todas as janelas se enchem de pássaros. A cidade cobre-se de penas e transforma-se ela própria numa interminável ave. Por fim, os pássaros desaparecem da mesma forma que apareceram, sem ninguém perceber como nem porquê.
Lá ao fundo, no meio da algazarra, cerca de uma centena de idosos ajoelha-se no chão e ergue as mãos ao céu em sinal de súplica. Na varanda de um edifício mais alto, uma belíssima mulher de seios descobertos lança jarros de água para a rua e ri freneticamente. No telhado de uma casa, dois homens disparam tiros para o ar. Na rua à direita, as crianças, descalças, lançam papagaios.
Uma mulher mais velha dirige-se a Paul Court. Olha-o muito fixamente e pergunta-lhe:
- Quem és tu, o que fazes na cidade do vento? - mas sem mexer os lábios, a boca, nada.
- Quem és tu, o que fazes na cidade do vento, homem? - e nada, a mulher não mexe a boca.
O som nasce claramente naquele corpo, mas não há gestos, não há movimentos, como se a velha falasse com o pensamento e as palavras aparecessem tão claras como aparece a música das bandas e a agitação dos habitantes de Hashir.
Um homem mais jovem, aparentando ter cerca de 30 anos, dirige-se a ele com ar reprovador.
- Não devias ter entrado na cidade neste dia, estrangeiro! - diz-lhe, sem mexer a boca.
- Não devias ter entrado na cidade neste dia, estrangeiro! - e não há movimento na sua boca.
O homem e a velha afastam-se e de seguida surge um grupo de 5 homens armados. Agarram em Paul Court pelos braços e arrastam-no. Durante 5 dias, os dias em que duraram as festas, Paul não viu ninguém, não falou com ninguém. Fechado num quarto escuro, recebia água e alimentos por uma pequena abertura na porta, mas ao terceiro dia esqueceram-se dele. E apenas escapou quando a velha que primeiramente o abordou lhe abriu a porta e perguntou:
- Quem és tu, o que fazes na cidade do vento, estrangeiro?- e não abriu a boca.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Paul Court, o viajante do Médio Oriente

Cheguei à estalagem depois das duas da manhã.

No quarto 5, no primeiro andar, e por cima da recepção, instalou-se Paul Court, o inglês gago, 10 anos atrás. Segundo Alvarez, não sai do quarto mais do que 10 minutos por dia, o suficiente para permitir que madame Sophie, que ele detesta, lhe arrume o quarto. "Velho porco inglês, fora daqui! Fora daqui!", grita-lhe madame Sophie. Paul Court desce as escadas aos gritos e corre num susto para o outro lado da rua. Espreita nas pontas dos pés para as janelas do seu quarto - ora num pé, ora noutro, sem descanso; levanta o queixo, afina o olhar, brame os punhos com fúria no ar. Quem passa na rua não deixa de reparar nas ceroulas encardidas de Paul Court e na jaqueta do exército de Sua Majestade, desfigurada por camadas de botões cosidas aleatoriamente. Quando madame Sophia acaba de arrumar e de limpar os aposentos de Paul Court, e ele assim o percebe, entra a correr a toda a velocidade na estalagem, trepa os degraus dois a dois e entra no quarto, batendo a porta com estrondo. Muitas vezes, ainda madame Sophie não acabou a limpeza e novamente corre Paul Court para o outro lado da rua, espreitando para dentro do quarto nas pontas dos pés. O inglês gago apenas come bolachas e bebe água, receitou-lhe esta dieta um sábio nómada. Paul Court é especializado em viagens pelo Médio Oriente, e já visitou os seguintes países e territórios: Afeganistão, Arábia Saudita, Bahrein, Chipre, Iémen, Iraque, Irão, Jordânia, Omã, Palestina, Síria, Sudão, Líbia, Líbano. Alvarez desconfia que Paul Court sofre de uma doença qualquer, embora não se atreva a tentar adivinhar qual. "Quem o devia saber era o doutor Mnérides,  especialista em mitologia da medicina. O doutor Mnérides sabia de cor todos os catálogos de doenças, físicas, mentais ou transcendentais, escritos desde que se escreve neste planeta. O doutor Mnérides saberia, por exemplo, discorrer prolongadamente sobre a doença dos pés verrucosos do povo Maia: causas, primeiros sinais, sintomas, diagnóstico diferencial, características e consequências físicas e emocionais para o portador, evolução da doença, impacto na comunidade próxima e distante, percepção dos doentes pelos membros da comunidade interna e externa, implicações nos cuidados de saúde da família, etc.. O doutor Mnérides foi um grande sábio. Morreu no ano passado, não se sabe de que doença. Uma grande perda. O doutor Mnérides não deixava sair ninguém desta estalagem sem um exame completo, incluindo fígado, pâncreas e coração. Mas já morreu."

Digo-lhe adeus, até amanhã, espero acordar cedo no dia seguinte, explico.
Descendo as escadas duas a duas, vem Paul Court. Dirige-se em corrida para o outro lado da rua, estica-se em bicos de pés e espreita para dentro do seu quarto.
- Paul Court é sonâmbulo - explica-me Alvarez.